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PONTUAÇÃO DE “MOTIVOS DO CRIME PARANÓICO: O CRIME DAS IRMÃS PAPIN”

2 de junho de 2017by Ato Freudiano0


PONTUAÇÃO DE “MOTIVOS DO CRIME PARANÓICO: O CRIME DAS IRMÃS PAPIN”¹

Lilian Freire²

Em 1933, os jornais noticiaram o Crime das Irmãs Papin como “O Massacre de
Mans”. Christine (28 anos) e Léa (21 anos) Papin trabalhavam há vários anos na
casa de uma família burguesa. Eram consideradas criadas-modelo e também
criadas-mistério devido à indiferença que demonstravam. O que chamou a atenção
da opinião pública foi a falta de motivos para o crime e isso provocou comoção e
inquietação.

 

O Crime

Na noite do dia 2 de fevereiro, as irmãs, inábeis, provocaram um curto-circuito
elétrico, o que resultou em uma provável cena de mau humor e censura das patroas
– mãe e filha – que retornavam de um passeio. Por coisas menos importantes, elas
já se mostravam indispostas em relação às irmãs. As declarações de Christine
sobre a reação das patroas variavam. O ataque das irmãs foi súbito, simultâneo,
levado ao paroxismo do furor: cada uma delas subjugou uma das patroas;
arrancou-lhe os olhos das órbitas e as espancou. Com as patroas ainda vivas,
esmagaram suas faces com qualquer instrumento que tinham à mão. Deixando à
mostra o sexo delas, cortaram as coxas e nádegas de uma para ensanguentar as da
outra. Em seguida, lavaram os instrumentos, a si mesmas e deitaram-se na mesma
cama, com a conclusão “Agora tudo está limpo!”³, fórmula que parecia ter o tom
da desilusão, sem qualquer emoção após a “orgia sangrenta”.

 

O Inquérito

No julgamento, não fizeram queixa, não declararam ódio ou motivo para o crime. A
única preocupação era a de partilhar a responsabilidade pelo crime. Três médicos
peritos não apontaram sinal de delírio, demência ou de distúrbio atual psíquico
ou físico. Nenhum dado preciso deu alguma indicação, ouvia-se apenas impressões:
uma tentativa atrapalhada de emancipar Léa, junto ao Prefeito; a opinião do
secretário-geral, que as achou “meio piradas”; o testemunho de um delegado que
as considerava “perseguidas”; eram unidas por uma afeição singular; eram imunes
a qualquer outro interesse; passavam os dias de folga juntas e dentro do quarto;
tinham um pai alcoólatra e brutal que, segundo diziam, violentou uma das filhas,
negligenciando a educação delas. Nenhum destes dados foi levado em consideração.

Na prisão, Christine e Léa foram separadas e após cinco meses, Christine teve
uma crise de agitação violenta, com alucinações aterradoras. Numa segunda crise,
tentou arrancar os próprios olhos, ficou apenas com algumas lesões e foi preciso
contê-la com camisa-de-força. Ela fazia exibições eróticas e surgiram sintomas
melancólicos: depressão, inapetência, auto-acusação com atos expiatórios
repugnantes e frases delirantes. Christine declarou que simulara estes estados,
mas Lacan adverte: esta declaração não pode ser considerada a chave real de sua
natureza, pois o sentimento de jogo que o sujeito sente não explica nem exclui
seu comportamento mórbido.

Em 30 de setembro, o júri condenou as irmãs Papin e ao compreender que seria
decapitada na praça de Mans, Christine recebeu a notícia de joelhos. Mas as
características do crime, bem como os problemas de Christine na prisão, a
estranha vida que as irmãs levavam, convenceram os psiquiatras que eram
irresponsáveis por seus atos. Dr. Logre ao ver a recusa de que um contralaudo
fosse feito, assumiu uma posição de defesa e construiu hipóteses sobre a
presumível anomalia mental das irmãs: ideias de perseguição, perversão sexual,
epilepsia ou histero-epilepsia.

 

A Discussão teórica de Lacan

Para Lacan, a indiferença que marcava as irmãs não era uma resposta à perda de
simpatia dos patrões. Havia entre patrões e empregadas um silêncio que não podia
ser vazio, mesmo que fosse obscuro para os dois lados. Lacan explora a paranoia
como entidade mórbida que, apesar da revisão feita pela psiquiatria, apresenta
três traços clássicos:

 1. Delírio intelectual que varia de ideias de grandeza às ideias de
    perseguição;
 2. Reações agressivas, com frequência, homicidas;
 3. Evolução crônica.

 

No que concerne à estrutura desta psicose, há duas concepções que se opõem:

 1. Considera a paranoia como o desenvolvimento de uma “constituição” mórbida,
    de um vício congênito do caráter;
 2. Considera seus fenômenos elementares como distúrbios momentâneos da
    percepção qualificados de interpretativos devido à sua analogia aparente com
    a interpretação normal: o delírio seria um esforço racional do sujeito para
    explicar essas experiências; o ato criminoso seria uma reação passional
    motivada pela convicção delirante.

 

Para Lacan, essas duas concepções são insuficientes. Em sua leitura destaca a
importância vital das relações sociais que incidem sobre cada uma das três
ordens de fenômenos. A noção dinâmica de tensões sociais é, para ele, um fator
que explica os fatos da psicose, na medida em que o estado de equilíbrio ou
ruptura destas tensões define a personalidade no indivíduo. Lacan eleva a pulsão
agressiva que se resolve no assassinato a fator fundamental por aparecer como
afecção que serve de base à psicose. A pulsão é inconsciente e seu conteúdo
intencional só pode se manifestar mediante compromisso com as exigências sociais
integradas pelo sujeito, exigências que se traduzem como camuflagem dos motivos,
que é precisamente todo o delírio. Em si mesma, esta pulsão é marcada pela
relatividade social e tem sempre a intenção de um crime, seja por vingança ou
por punição, procedendo dos ideais sociais e se identificando, muitas vezes, com
ato de moralidade com o alcance de expiação (autopunição). Eleição da vítima,
sua eficiência mortal, os modos de desencadeamento e de execução são as
características objetivas do crime que variam com os graus de significação
humana da pulsão fundamental. São esses graus que comandam a reação da sociedade
em relação ao crime paranoico: é uma reação ambivalente que leva ao contágio
emocional do crime e às exigências punitivas da opinião pública.

O horror que despertou deu, ao crime, o valor de imagem atroz, mas simbólica nos
seus mais hediondos detalhes, incluindo nas metáforas do ódio mais usadas, como
“eu lhe arrancarei os olhos”. Tais metáforas recebem sua execução literal. Ao
aplicar o máximo da pena, a consciência popular revela o sentido que dá a este
ódio e talvez se engane quanto ao sentido real da aplicação da pena máxima. O
provérbio “compreender é perdoar” se submete aos limites de cada comunidade
humana. Fora deles, compreender, ou acreditar compreender, é condenar.

O conteúdo intelectual do delírio se apresenta como superestrutura que, ao mesmo
tempo, justifica e nega a pulsão criminosa. Para Lacan, ele se submetido às
variações desta pulsão, à queda que resulta de sua satisfação. No Caso Aimée, o
delírio se desvanece assim que o ato foi cometido. As insuficiências das
descrições e explicações clássicas afirmaram a estabilidade dos delírios
paranoicos, quando há, apenas, constância da estrutura, e levaram ao
desconhecimento da existência destas variações. Com isso, os peritos se
equivocam em suas conclusões, o que explica o embaraço diante dos crimes
paranoicos, produzindo mais incertezas.

O delegado foi o único que deu uma pista de formulação de ideias delirantes
antes do crime. A imprecisão de seu depoimento, no entanto, não poderia ser
motivo de sua rejeição no tribunal, visto que qualquer psiquiatra sabe que a
indefinida esteriotipia das afirmações dos paranoicos, antes que se explicitem
em fórmulas delirantes, produzem um estranhamento que não pode ser
desconsiderado. Além disso, as funções de triagem dos centros da polícia
forneciam o hábito desta experiência.

Na prisão, Christine manifestou vários temas delirantes, a partir dos quais
Lacan qualifica os sintomas típicos do delírio: desconhecimento sistemático da
realidade, com a crença de que as patroas haviam voltado em outro corpo e as
crenças ambíguas expressas em frases como “Creio mesmo que numa outra vida eu
devia ser o marido de minha irmã”. Lacan aponta que há uma certa ambivalência
constante nas crenças delirantes, desde as formas afirmativas dos delírios
fantásticos (nas quais o sujeito reconhece uma “dupla realidade”) até as formas
interrogativas dos delírios de suposição (nas quais a afirmação da realidade lhe
parece suspeita).

A análise dos conteúdos e das formas, permitiu a Lacan retirar as duas irmãs da
classificação geral limitada de paranoia, e ele considera que as formas da
psicose nas duas irmãs são, senão idênticas, pelo menos correlativas. No
decorrer das investigações, considerou-se impossível que a mesma loucura fosse
compartilhada por duas pessoas, ou que a revelassem simultaneamente. Lacan
aponta que tal afirmação é falsa. Os delírios a dois estão entre as formas das
psicoses reconhecidas e se produzem eletivamente entre parentes próximos (pai e
filho, mãe e filha, irmãos e irmãs). Seu mecanismo dependeria, em certos casos,
da sugestão exercida por um sujeito delirante ativo sobre um sujeito débil
passivo

Lacan oferece outra concepção da paranoia que explica mais satisfatoriamente o
paralelismo criminal das irmãs. A pulsão assassina que ele entende ser a base da
paranoia seria apenas uma abstração insatisfatória, se não estivesse controlada
por uma série de anomalias correlativas dos instintos socializados e se não se
pudesse considerar essas anomalias pulsionais como contemporâneas em sua gênese.
Homossexualidade, perversão sado-masoquista, são os distúrbios instintivos que
somente a psicanálise soube desvelar. A partir de suas experiências com a escuta
de paranoicos, Lacan hesitou diante da afirmação da existência de relações
sexuais entre as irmãs, e aponta a precisão do Dr. Logre ao usar o termo sutil
“casal psicológico”. Os psicanalistas, quando derivam a paranoia da
homossexualidade, qualificam esta homossexualidade de inconsciente, de “larvar”:
“Essa tendência homossexual só se expressaria por uma negação apaixonada de si
mesma, que fundaria a convicção de ser perseguido e designaria o ser amado no
perseguidor”⁴.

Lacan retoma Freud, no artigo “Sobre alguns mecanismos neuróticos no crime, na
paranoia e na homossexualidade”, em que ele não fornece a chave do paradoxo, mas
os elementos para encontra-la: nos primeiros estádios da sexualidade infantil,
há uma redução forçada da hostilidade primitiva entre os irmãos. Freud aponta
que uma inversão anormal (de hostilidade em desejo) pode se produzir. Esse
mecanismo gera um tipo especial de homossexuais entre os quais predominam os
instintos e as atividades sociais. Lacan reconhece esse mecanismo como
constante. A fixação amorosa é a condição primordial da primeira integração nas
tendências instintivas do que se chama as tensões sociais. É uma integração
dolorosa, na medida em que a civilização exige o sacrifício pulsional de seus
membros: este é o vínculo com a intencionalidade pessoal do sofrimento infligido
que constitui o sadismo. Esta integração se faz segundo a lei da menor
resistência por uma fixação afetiva narcísica ainda muito próxima do eu
solipsista⁵, em que o objeto escolhido é o mais semelhante ao sujeito: esta é a
razão de seu caráter homossexual. Esta fixação deve ser ultrapassada para chegar
a uma moralidade socialmente eficaz.

Nos paranoicos, esta evolução não vai além do primeiro estádio e sabe-se que sua
ação estava presente na vida das irmãs. A observação dos casos múltiplos de
paranoia associada à sondagem social levou Lacan a considerar a estrutura das
paranoias e dos delírios vizinhos como tributários deste tipo de complexo
fraterno. O mesmo ele observou no caso Aimée, em que a ambivalência afetiva para
com a irmã mais velha dirigiu o comportamento autopunitivo da paciente. No curso
de seu delírio, Aimée incorporou em outras personagens as acusações de seu ódio
amoroso, num esforço de se libertar de sua fixação primeira. Mas cada uma das
perseguidoras era apenas uma nova imagem, prisioneira do narcisismo de Aimée, da
irmã da qual ela fez seu ideal. Por serem apenas imagens, Aimée amou todas as
perseguidoras.

O “mal de ser dois” de que sofrem os paranoicos, não os liberta do narcisismo.
Aimée atinge aquela que ela odeia justamente por representar o ideal que ela tem
de si mesma. A necessidade de autopunição, o sentimento de culpa, também estão
presentes nas Irmãs Papin, nem que seja no ato final de Christine em
ajoelhar-se. Mas parece que, entre elas, não podiam instaurar a distância
necessária para se matar, pois, siamesas, formavam um mundo fechado. Dr. Logre,
aos ler seus depoimentos após o crime, comenta: “tem-se a impressão de estar
lendo duplo”. Com os únicos meios de seu isolamento, elas devem resolver seu
enigma: o enigma humano do sexo. Os paranoicos podem arquitetar loucuras sobre o
enigma do falo e da castração feminina. É, portanto, possível reconhecer, nas
confissões tímidas do sujeito dito normal, as crenças que ele cala e que
acredita calar porque as considera pueris, quando, de fato, ele se cala porque
sem o saber ainda adere a elas.

Na tarde do crime, que gerou a ansiedade de uma punição iminente, as irmãs
associaram à imagem das patroas, a miragem de seu mal. O que elas detestavam nas
vítimas, era a própria aflição. Elas arrancaram os olhos como num ato de
castração e a curiosidade sacrílega que constitui a angústia do homem desde as
mais antigas eras, foi o que as animou quando desejaram suas vítimas, quando
elas perseguiram, em suas feridas o que Christine, mais tarde, chamou de “o
mistério da vida”.

 

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¹ Este texto é a pontuação do capítulo “Motivos do crime paranoico: o crime das
Irmãs Papin”, da tese de Jacques Lacan (1932), Da psicose Paranoica em suas
relações com a Personalidade, como contribuição à atividade Núcleo de
Investigação de Psicoses, do Ato Freudiano.

² Psicanalista, membro do Ato Freudiano.

³ LACAN, p. 382.

⁴ LACAN, p. 388

⁵ SOLIPSISMO: doutrina que defende que a única realidade no mundo é o eu.

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LACAN, Jacques. Motivos do crime paranoico: o Crime das Irmãs Papin. In: ____.
Da Psicose Paranoica em suas relações com a Personalidade. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1987, p. 381-390.

 * Irmãs Papin
 * Lacan



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