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Ilustração: Carvall

questões político-jurídicas


AFINAL, BOLSONARO PODE MESMO SER PRESO?


PODE SIM. E A JULGAR PELA PRISÃO DE SILVINEI VASQUES, TALVEZ NÃO DEMORE

Rafael Mafei | 15 ago 2023_08h01
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Ninguém suporta bordões preguiçosos como “o cerco jurídico está se fechando”, é
verdade, mas não há jeito melhor de apresentar a constatação que se impõe após a
revelação dos achados que embasaram a operação Lucas 12:2, conduzida pela
Polícia Federal na última sexta-feira.

A investigação detalhou, didaticamente, como dois tenentes do Exército que foram
ajudantes de ordens de Jair Bolsonaro – Mauro Cid e Osmar Crivelatti –,
juntamente com um general reformado, que é pai de Cid e amigo de Bolsonaro desde
os tempos de escola militar, envolveram-se diretamente em desvio, evasão e venda
ilegal, para apropriação privada, de bens de alto valor dados ao Brasil por
nações estrangeiras. A PF mostrou também a atuação do advogado da família
Bolsonaro, Frederick Wassef, na recompra de parte dos bens indevidamente
desviados e vendidos no exterior, um movimento de eficácia jurídica duvidosa,
talvez até contraproducente: não desfaz o eventual crime já cometido, e ainda
revela a intenção de apagar rastros que poderiam levar à sua descoberta – coisa
que jamais pega bem com as autoridades.

Além de ter revelado que essas pessoas tinham potencial conhecimento de estar
atuando à margem da lei – Mauro Cid, por exemplo, sugeriu que fossem evitados
depósitos bancários, dando preferência a transações em dinheiro vivo –, a
operação de sexta-feira revela o envolvimento pessoal e direto de Bolsonaro em
parte da empreitada para o desvio de bens. Isso porque o voo que levou parte dos
itens para fora do Brasil, em dezembro de 2022, foi um voo oficial, requisitado
por ele para sua viagem à Flórida, mesmo local onde vivia o pai de Mauro Cid.
Vale dizer: se antes ele seria apenas o possível beneficiário de crimes
cometidos por seus subordinados – suspeita que também se fortaleceu por
mensagens de Cid que o tratavam nominalmente como destinatário dos produtos dos
crimes –, os últimos passos da investigação colocam Jair também como executor de
uma parcela da operação. A insistência em afirmar que os assessores operavam
autonomamente, que já era pouco crível, torna-se de agora em diante
absolutamente cínica. Essa circunstância distingue o caso das joias do episódio
da falsificação do cartão de vacinas, no qual também há boa base de
materialidade, além do óbvio interesse pessoal de Jair, mas nada que o indique
colocando a mão na massa para fazer as coisas acontecerem.

 


 

Sabendo que as digitais de Bolsonaro estão agora na cena do provável crime, a
dúvida de muitos pode ser singelamente resumida em uma pergunta curta: e a
prisão? 

Grosso modo, há duas razões distintas pelas quais alguém pode ser preso no
contexto criminal. A primeira, e mais própria delas, é por ter sido condenado,
com trânsito em julgado, a pena privativa de liberdade em regime fechado. Isso
pressupõe o trâmite regular de um processo criminal e o esgotamento dos
recursos, com resultado final desfavorável ao acusado. A depender das
características do sujeito (antecedentes, por exemplo) e dos crimes pelos quais
foi condenado, ele fatalmente terá de iniciar o cumprimento de sua pena em uma
prisão. Sobre isso, por ora, nada é possível afirmar sobre o futuro de
Bolsonaro: embora ele seja investigado em múltiplas frentes, muitas delas com
frutos promissores em seu desfavor, sequer há denúncia do Ministério Público
oferecida contra ele em qualquer uma delas.

O outro fundamento possível para a prisão de alguém é o acautelamento de uma
investigação ou processo em curso. A prisão cautelar, medida extrema que só tem
lugar diante de crimes graves quando nenhuma outra forma de acautelamento possa
assegurar o que dela se busca, serve para tirar a liberdade de locomoção de
quem, se solto, provavelmente destruirá provas, coagirá testemunhas, empreenderá
fuga ou continuará praticando crimes. Mauro Cid está preso cautelarmente, por
exemplo. No curto prazo, essa é a modalidade de prisão com a qual Jair deve
passar a se preocupar, especialmente se considerarmos a linha de raciocínio
mostrada por Alexandre de Moraes em outro caso análogo.

 


Na prisão de Silvinei Vasques, o fiel súdito de Bolsonaro que empregou a
estrutura da Polícia Rodoviária Federal para atrapalhar a votação de eleitores
nas cidades mais lulistas do Nordeste, Moraes justificou a necessidade de prisão
do ex-policial afirmando que ele, pelo prestígio pessoal que ainda tinha junto a
outros policiais, poderia interferir sobre testemunhas que ainda serão ouvidas.
Nos termos empregados pela PF, e acatados por Moraes, haveria uma “reverência” a
Vasques que poderia desviá-las da verdade, e que subsistiria independentemente
de ele não mais ocupar o posto máximo da instituição. (Tivesse a decisão sido
dada por Fernando Barros e Silva, weberiano emérito da revista piauí, ele diria
que Vasques, mesmo já afastado de seu cargo de liderança burocrática, seguiu
exercendo liderança carismática sobre seus antigos subordinados, revelando ter o
poder de levá-los a mentir em seu benefício.)

É esse modo de pensar que representa o maior risco jurídico à liberdade de Jair
no curto prazo: se, aos olhos de Moraes, até o relativamente diminuto Vasques
tem prestígio suficiente para pôr em risco, com sua liberdade, a integridade dos
testemunhos que virão, que dizer então de um líder carismático com a força de
Bolsonaro, que ainda por cima conta o respaldo do PL, maior partido do Congresso
Nacional? Qual será o perigo dessa liberdade?

Não bastasse a diferença de peso político entre ambos, Bolsonaro tem se
mostrado, nas entrelinhas, disposto a flertar com algo que se parece muito com
uma interferência imprópria nas apurações: em recente resposta a um protesto do
general Lourena Cid, o pai, Jair afirmou que Mauro Cid, o filho, “não está
abandonado”. Que outra coisa significará isso senão a promessa de que ele está,
e continuará, a emprestar seu resiliente poder político para ajudar Cid a
escapar das mesmas investigações criminais que o ameaçam? 

 


 

A prisão de uma figura política superlativa, como Bolsonaro, jamais é trivial.
Se ela vier a acontecer, é seguro que haverá protestos e indignação ao menos da
parcela mais fanatizada de seus apoiadores. Mas esses protestos serão mais
dissonantes, e menos incômodos, quanto mais robustas forem as evidências a
apoiar a eventual decisão que o mande para trás das grades. Do ponto de vista
estratégico, o decisivo mesmo é que a decisão não coloque o tribunal em conflito
com a classe política, ou com outras instituições de peso. Ceteris paribus, não
há sinais de que uma tal conflagração esteja no horizonte.

Antes de tudo, é importante destacar que, entre as várias frentes de
investigação que ameaçam Jair, o caso das joias é o que mais escapa à guerra de
narrativas ideológicas que cinde o imaginário político brasileiro. Não é ameaça
à democracia, ou vacinação e pandemia, ou liberdade de expressão: é gente
mocozeando patrimônio presidencial para fora do Brasil, vendendo escondido e
repartindo o butim em dinheiro vivo. Tudo isso com a cara estampada em fotos, e
os nomes dos envolvidos, inclusive o de Bolsonaro, escritos por eles mesmos: não
é preciso imaginar, especular, inferir ou induzir coisa alguma para se
compreender a desonestidade sórdida da coisa toda.

A nota divulgada pelo Exército na sexta-feira, dizendo que a instituição “não
compactua com eventuais desvios de conduta de quaisquer de seus integrantes”,
sugere que a investida contra os envolvidos no esquema das joias não encontrará
ali resistência alguma. 

Tampouco no Congresso parece haver sinais de um clima azedo com o STF pelo
aperto a Bolsonaro nesse caso. A base de parlamentares bolsonaristas segue em
silêncio desde sexta-feira, atestando a dificuldade de reação em face de
malfeitos tão vulgares. Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) ainda não
se pronunciaram sobre esse novo capítulo da investigação, mas da primeira vez
que o caso das joias veio à tona, em março deste ano, nenhum deles mostrou
disposição para colocar a Câmara e o Senado como obstáculos ao Supremo e à PF.
No mesmo diapasão, o TCU, que costuma andar em sintonia com os parlamentares,
foi tão firme em sua resposta que Wassef achou boa ideia viajar às pressas aos
Estados Unidos e recomprar um dos bens desviados, por valor maior, para
devolvê-lo ao tribunal.

A incógnita que permanece é a Procuradoria-Geral da República, cuja inação está
na base de muitas (razoáveis) queixas jurídicas quanto ao protagonismo que
Alexandre de Moraes teve de assumir nos últimos tempos. Se a possível troca no
comando da instituição – o mandato de Augusto Aras expira em poucas semanas –,
mudar algo para Bolsonaro, só poderá ser para pior. 

É claro que se estiver nos planos da Polícia Federal, ou do futuro PGR, requerer
a Moraes uma medida mais, digamos, incisiva e pessoal contra Jair, convém
esperar as informações das prováveis quebras de sigilo bancário e fiscal do
casal Bolsonaro. Quanto mais flagrante for o envolvimento pessoal de Bolsonaro
no escândalo das joias, menores as chances de que qualquer instituição relevante
venha a se indispor com o Supremo por uma eventual prisão sua. 

Se a PF e Moraes acharem que de fato há algo a se ganhar com uma prisão de
Bolsonaro desde logo, não será o cálculo político a refreá-los. E se acharem que
não, aí é Silvinei que poderá reclamar: “Quer dizer que minha liberdade é uma
ameaça, e a do Jair não?”



Rafael Mafei

É advogado e professor de Direito na USP e na ESPM. Publicou Como Remover um
Presidente: Teoria, História e Prática do Impeachment no Brasil (Zahar)



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